
Nas últimas décadas, os evangélicos brasileiros tornaram-se protagonistas de uma transformação cultural profunda. De comunidades marginalizadas a forças sociais relevantes, sua presença ganhou visibilidade na política, na mídia e na economia.
Uma pesquisa recente do Instituto DataSenado revela o perfil predominante dos usuários de aplicativos de apostas esportivas no Brasil homens de até 39 anos, com ensino médio completo. Segundo o relatório Panorama Político 2024, apostas esportivas, golpes digitais e endividamento, divulgado em 1º de abril de 2024, cerca de 13% da população com 16 anos ou mais, o equivalente a 22,13 milhões de brasileiros declarou ter participado de apostas nos últimos 30 dias.
Entre os apostadores, 62% são homens e 38% são mulheres. A maior concentração está na faixa etária entre 16 e 39 anos (56%), seguida pelos grupos de 40 a 49 anos (17%), 50 a 59 (13%) e 60 anos ou mais (14%). Em relação ao nível de escolaridade, 40% possuem o ensino médio completo, 23% não concluíram o ensino fundamental e 20% têm ensino superior incompleto ou mais.
Especialistas, profissionais da saúde, educadores e membros de grupos de apoio a dependentes do jogo relataram à Folha de São Paulo um avanço significativo entre jovens e até mesmo adolescentes, com diversos casos considerados preocupantes. Esse cenário se dá apesar da proibição legal do acesso a menores de 18 anos.
Mas, em meio a tantos avanços, um novo desafio tem se alastrado de forma sorrateira, a explosão das casas de apostas esportivas, as chamadas bets e sua influência crescente também entre os que professam a fé cristã.
Num país apaixonado por futebol e marcado por desigualdades históricas, as bets se apresentam como uma promessa de ascensão rápida: “Ganhe em casa, mude de vida”, “Aposte no seu conhecimento”. A teologia da prosperidade, tão presente em setores do evangelicalismo, acaba servindo de solo fértil para essa ilusão.
O problema não está apenas na estatística, embora ela seja cruel. Segundo o jornalista João Gabriel, de cada R$ 100 apostados, mais de R$ 90 retornam para o sistema. Sem dúvidas é uma indústria calculada para fazer perder. Mas existem outros riscos. As bets operam por meio de uma lógica que se opõe frontalmente à ética do Reino de Deus, o imediatismo, a ganância, a má administração dos recursos é apoiada pela confiança no acaso.
De acordo com a ética cristã, Jesus nos ensinou a orar: “O pão nosso de cada dia nos dá hoje” (Mt 6.11). Esse ensinamento não é uma oração de riqueza, mas de sustento e confiança. Não é sobre sorte, mas sobre provisão fiel. As apostas distorcem esse fundamento. Transformam o pão diário em uma jogada incerta, o trabalho honesto em uma esperança estatística. Sem contar na promoção da desgraça do outro.
Segundo Kenner Terra, pastor da Igreja Batista de Água Branca, “Ganhar com a desgraça do outro é um bom exemplo de coletivização da insensibilidade. Paulo chamaria isso de carnalidade. E sobre justiça de Deus, no Salmo 82 isso significa proteger os mais frágeis e pobres, os livrando das mãos do ímpio e explorador”.
Para o pastor e psicólogo Daniel Guanaes, da Igreja Presbiteriana do Recreio, na zona oeste do Rio de Janeiro, o papel da igreja, como formadora de opinião, é conscientizar os membros utilizando uma linguagem que os ajude a entender os efeitos prejudiciais do vício em jogos. “A igreja pode se tornar um espaço dentro de seu ecossistema para mostrar às pessoas como essas atividades geram vício e dependência, e os danos que isso causa aos relacionamentos, à saúde financeira e à segurança”, opina Daniel, que exemplifica: “Quem não tem dinheiro e acaba pegando emprestado para apostar e pode acabar sendo ameaçado. Existem desdobramentos muito graves”.
O fato é que a propagação das bets entre evangélicos revela uma fragilidade também teológica e pastoral, uma espiritualidade desatenta à formação ética e seduzida pela estética do sucesso. A idolatria do dinheiro se disfarça de fé. Pregadores, influenciadores e até líderes cristãos começam a normalizar as apostas, tratando-as como “estratégia financeira” ou “lazer inteligente”. E o que antes era tratado como vício, agora vira oportunidade.
É preciso lembrar que “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” (1Tm 6.10). Não há neutralidade nesse jogo. A bet não é apenas uma plataforma; é um sistema que alimenta vícios e destrói famílias. A ausência de posicionamento firme por parte de muitas igrejas contribui para o agravamento do problema. Em nome de uma cultura da não-confrontação, evita-se falar sobre o assunto. Mas silenciar diante do pecado não é prudência e sim cumplicidade.
É preciso entender que o Evangelho transforma todas as esferas da vida, espiritual, emocional, social e econômica. Por isso, não podemos falar de discipulado sem incluir também o uso ético do dinheiro. Assunto que assombra muitos pastores.
É preciso entender que o Evangelho transforma todas as esferas da vida, espiritual, emocional, social e econômica. Por isso, não podemos falar de discipulado sem incluir também o uso ético do dinheiro. No entanto, esse é um tema que assombra muitos pastores e líderes, em parte por causa dos inúmeros escândalos financeiros que atingiram figuras públicas do meio evangélico. Salários exorbitantes, ostentação nas redes sociais e estilos de vida incompatíveis com o espírito do Evangelho minam a autoridade moral para tratar do assunto. Como falar sobre o uso responsável dos recursos, quando os próprios líderes se tornam símbolo de consumo desenfreado e distanciamento das realidades do rebanho? Nesse cenário, o silêncio pastoral se torna não apenas um erro estratégico, mas uma omissão teológica grave.
O apóstolo Paulo não hesitou em chamar a atenção dos coríntios por seu comportamento imaturo e incoerente com o Evangelho. Precisamos do mesmo zelo hoje. A igreja que se engaja na luta contra a lógica das apostas se torna sinal do Reino no mundo, uma comunidade que acredita mais na partilha do que no lucro, mais na esperança do que na sorte, mais no caráter de Cristo do que nas promessas de um clique.
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